Violações

Caetano Barsoteli
18 min readAug 1, 2022
by badprompt

Por Catherine Lacey | Tradução de Caetano Barsoteli

Ele queria ter garantido que ela não escreveria sobre ele, mas ele sabia que não poderia pedir abertamente a ela para que não escrevesse sobre ele, já que tinha certeza que um pedido assim despertaria um sermão sobre como ele não estava no direito de impor restrições ao trabalho dela, e ela poderia inclusive provocá-lo por ser narcisista ao ponto de acreditar que ela estava planejando escrever sobre ele, e ele implicaria com essa palavra — narcisista –, um diagnóstico que ela bem sabia que ele muitas vezes temeu que seus amigos e conhecidos pudessem estar, esse tempo todo, dando a ele em segredo — e ele insistiria que era apenas prático, e não narcisista, assumir que ela, sua ex-esposa, cujos últimos dois livros continham vários detalhes alegadamente autobiográficos, pudesse decidir incluir alguns ou vários detalhes que poderiam parecer, para alguns, que foram retirados dos anos complicados que passaram juntos e do término não exatamente não-dramático deles, mas ela provavelmente responderia a isso dizendo que era ridículo e infantil dele acusá-la de escrever autobiografia — especialmente porque ele sabia o tanto de problema que tais acusações tinham causado a ela no passado — e mesmo que ela desse de escrever algo que contivesse alguns ou vários detalhes que ecoassem sua vida (como toda escritora fazia ou já tinha feito em algum momento ou às vezes sempre), ela sabia que ele sabia que ela não se interessava em escrita memorialista, e ela sabia que ele sabia que ela era, como escritora e leitora, interessa apenas em obras que usavam a tangibilidade de personagem e trama como um método para elucidar ideias intangíveis, e não para registrar uma história pessoal, e mesmo que ela escrevesse um personagem que de algum jeito se parecesse com ele ela jamais poderia realmente escrever sobre ele, o ele mais real e mais verdadeiro, porque não existia essa coisa de um self imóvel e constante, e mesmo que existisse uma coisa assim ela certamente não poderia declarar conhecer o dele, ou se ela o conhecesse seria abstrato demais para colocar em palavras, e de qualquer forma ele sempre pareceu desinteressado ou incapaz de ser emocionalmente vulnerável com ela e mesmo depois de todos esses anos juntos ela ainda estava perplexa e profundamente magoada pela revelação repentina da crueldade secreta dele e do estrago que ele foi capaz de infligir nela, portanto é claro que ela não iria escrever sobre ele porque ela claramente nunca o conheceu — e não importa quantas vezes ele tentasse interromper esse discurso (que teria, nesse ínterim, aumentado em velocidade e volume), ele não conseguiria falar alto ou com força o suficiente para corrigir o mal-entendido original dela sobre o que ele havia dito (é claro que ele não achava que ela escrevia autobiograficamente), mas no instante em que ela terminasse seu discurso ele estaria cansado demais para dizer outra coisa, e estar cansado para argumentar seu lado seria o equivalente a levantar uma bandeira branca, uma submissão que poderia mais tarde atuar como sua renúncia a qualquer direito de ficar aborrecido pela inclusão no próximo trabalho dela de alguma frase ou elemento de trama ou personagem que ele pudesse reconhecer, queira narcisística ou corretamente, como sendo baseado em algo que ele disse ou fez ou foi.

Então ele nunca a pediu diretamente para não escrever sobre ele, já que estimou que isso causaria mais problemas do que poderia ter aliviado, embora ele sentia-se incapaz de parar de ansiar por algum tipo de garantia de que ela não escreveria sobre ele, ou ao menos que ela não escreveria sobre ele de um jeito que fosse imediatamente reconhecível, mas quanto mais ele chafurdava-se nisso e quanto mais ele falava sobre isso na terapia e quanto mais ele falava sobre isso em sua cabeça pelo resto da semana para a companhia imaginária de seu terapeuta, mais ele percebia que parte do seu desejo em garantir que ela não escreveria sobre ele era um desejo ainda mais forte de que ela escrevesse sobre ele constantemente, um desejo de que ela sentisse sua ausência tão profundamente que ela seria forçada — como uma criança — a criar pateticamente um simulacro dele e passar tantos anos com aquele simulacro que ela escreveria um daqueles tomos de mil páginas que ela tinha jurado nunca escrever, um livro que ficcionalmente continuasse o relacionamento que ela tinha deixado — porque apesar de qualquer coisa que ela acreditasse sobre ele, foi ela quem técnica e oficialmente o deixou –, e neste livro, talvez uma história de amor ambientada numa zona de combate menos conhecida da Segunda Guerra Mundial, a sua equivalente fictícia seria uma antiheroína falha e sentimental e o equivalente fictício dele seria a às vezes incompreendida mas em no fim valente bússula moral do romance, e ela pessoalmente enviaria a ele por correio uma cópia do manuscrito e assim que ele abrisse na página de dedicação e se deparasse com suas iniciais, ele receberia um telefonema dizendo que sua ex-esposa tinha misteriosa e subitamente sucumbido a uma doença rara mas completamente indolor — uma vez que ele não fantasiava sobre o sofrimento dela, apenas sobre a sua morte súbita — e vigorado por essa notícia ele leria o último romance dela, e nele veria como ela tinha finalmente admitido estar errada em deixá-lo, e mesmo que ele houvesse mal-interpretado a obra — conforme ela muitas vezes o acusou de fazer quando ele leu rascunhos de histórias dela enquanto estavam juntos –, dessa vez ela não estaria lá para discordar. Dessa vez ele estaria certo e esse seria o fim da história.

Mas ela não escreveu sobre ele e ela não morreu e ele lembraria muitas vezes dela quando as correspondências chegassem. Violações de trânsito e estacionamento. Ofertas de cartão de crédito e catálogos de móveis. Ele às vezes abria as multas, examinava a foto da câmera de vigilância do carro dela atravessando o sinal vermelho com o intuito de fortalecer-se, a fim de sentir-se um pouquinho superior antes de ligar para ela e pedir, mais uma vez, que alterasse o endereço no documento do seu carro, uma tarefa que ela havia dito que iria cumprir meses atrás mas claramente não cumpriu. Só que quando ele ligou ela só pediu desculpas, disse que pensou que já tivesse alterado o endereço e que talvez isso levasse só um tempinho para o sistema e que de qualquer forma ele não precisava avisá-la sobre as multas porque estavam todas sincronizadas com um app no celular dela — assim como tudo na vida dela, parecia, estava sincronizado com um app no seu celular –, e que por isso ele podia simplesmente jogar as multas e todo o resto fora, simplesmente rasgar tudo e jogar no lixo, e ele fez isso por um tempo até perceber que se ele continuasse jogando fora a correspondência das pessoas e entidades que acreditavam que sua ex-esposa ainda vivia no seu endereço, ele poderia continuar recebendo a correspondência dela por anos, e ele provavelmente perderia horas de sua vida recebendo, rasgando e reciclando a correspondência dela. Então ele passou a escrever DEVOLVER AO REMETENTE: NENHUM DESTINATÁRIO em letras pretas e garrafais em cada envelope e a deixá-los para o carteiro levar de volta para o lugar de onde vieram e isso pareceu resolver o problema, embora os catálogos e ofertas de cartão de crédito continuassem a chegar, endereçados a ela mas seguidos, incertos, de Ou Residência Atual.

Ele continuou a ler as revistas parcialmente e às vezes — algumas para as quais ela tinha escrito e algumas em que ela aspirava publicar. Depois de retirar e descartar o rótulo com o endereço ele levava uma edição consigo em seu trajeto para a universidade ou deixava várias edições empilhadas na mesa de café, e quando a pilha ficava muito grande, ele reciclava primeiro as revistas em que ela havia publicado anteriormente, muitas vezes sem sequer olhar direito para elas, não querendo se deparar com a assinatura dela, ou pior, apanhar-se procurando por sua assinatura. Ele nunca esperava ver o nome dela na edição de uma das revistas em que ela nunca havia publicado, uma expectativa que tinha criado raízes tão firmes que ele quase não reconheceu o nome dela ao lado de um conto intitulado “Não foi”, um título que, ele sorriu para si, sardonicamente, não foi muito bom. Ele pôs a revista de lado — ele não iria, pensou, ler a história, não iria passar por isso — e ele chegou ao ponto de colocar a revista no cesto reciclável, mas sentiu-se imediatamente culpado por não ficar feliz por ela, pois não havia razão para não ficar feliz por sua ex-esposa ter alcançado o sucesso, não importa o quão inconsequente fosse no fim. Então ele se permitiu ler a primeira sentença–

Não foi o dia em que ele disse a ela que estava indo embora que foi o mais doloroso, e não foi o dia em que ele se mudou, ou o dia em que ele re-mudou depois de meio mudar-se de volta, e não foi nem o dia em que eles preencheram juntos a papelada no mesmo fórum onde alguns anos antes — cheios de esperança e endorfinas — converteram-se de duas pessoas que se importavam uma com a outra para uma única entidade legal, e não foi aquele passeio noturno no parque em que Gregory, um amigo dele que ela acreditava ser também seu amigo, não acenou de volta e virou abruptamente para a esquerda a fim de evitar a rota dela, e não foi sequer o dia em que ela recebeu uma série de mensagens de sua futura ex e flagrantemente mal-informada sogra que alternavam entre o pesar passivo-agressivo e a raiva aberta, e nem foi aquele sábado de manhã nublado em que houve um incêndio no prédio que ela alugava depois de ter vendido sua casa, em que ela tremia na calçada do outro lado da rua com a colcha da sua cama enrolada em seus ombros e percebia que não tinha ninguém para ligar além dele e que quando ele atendesse apesar de ser cedo ela brevemente se perguntaria se os meses em que estiveram separados tinha os alterado o suficiente para que pudessem ser bons um pro outro de novo, mas assim que ela o dizia que estava em pé e descalça na rua fria e não tinha para onde ir, ela escutou a voz de uma mulher dizendo algo no fundo abafado do que fosse a vida dele agora, uma vida da qual ela sabia cada vez menos, e nesse instante o zelador saiu do prédio e o alarme de incêndio parou e o zelador disse aos inquilinos cansados que esperavam na rua que não havia fogo, alarme falso, mil desculpas, nada demais, podem voltar pra dentro, voltar a dormir.

Era uma sentença longa — sério, longa demais e sem motivo aparente — e ele se lembrou de que ela uma vez confessou a ele que embora essas sentenças saíssem naturalmente dela, e embora elas tivessem sido aprovadas pela agente dela e outros escritores e editores e críticos, ela às vezes se perguntava se não eram uma muleta ou uma limitação, ainda que criassem uma espécie de ímpeto que agradava a ela e que talvez tivesse algo de prazerosamente extravagante sobre o quão escarrapachadas e quase barrocas elas podiam se tornar, e ela havia dito que Ursula K. Le Guin escreveu uma vez que Ernest Hemingway preferiria morrer do que empregar sintaxe, e ela gostava disso, e ela gostava da sintaxe dela, mas ela gostava de Hemingway também, e embora ela tivesse confiança no seu trabalho ela também duvidava que tivesse a cara de pau ou a habilidade de escrever aqueles tipos de sentenças-bala, aquelas breves e nanicas sentenças-cardume, e não era certo que um escritor decente fosse capaz de escolher uma técnica em vez de ter uma técnica pré-determinada que a ordenasse pra lá e pra cá? Mas talvez toda esse escarrapachar, ela havia dito a ele, era o coração pulsante do trabalho dela e ela não deveria questioná-lo, já que parecia lhe servir muito bem agora, mas ela ainda se perguntava se era uma limitação, um maneirismo, e agora aqui estava, a primeira história dela nessa revista em que ela sempre quis estar e talvez ele fosse o único que soubesse que ela pudesse suspeitar que estivesse apoiada numa muleta.

Nem esse foi o momento mais doloroso. Não. A coisa mais dolorosa nessa série de coisas dolorosas viria mais tarde, muito depois de ela ter parado de se preparar.

Meio dramático, ele pensou. Hiperbólico. Chorão. Certamente não um Hemingway. Ele pôs a revista de lado. Pelo menos não era diretamente ou claramente sobre ele. Para começar, eles não tinham se divorciado no mesmo lugar onde tinham se casado e nenhum dos seus amigos em comum faria algo tão rude como evitar ela em público e sua mãe nem mesmo tinha um celular e não tinha existido, infelizmente, a voz de outra mulher suavizando as bordas duras do apartamento em que ele vivia agora. Na verdade, era ela que havia mergulhado imediatamente em outro relacionamento e era ele que havia às vezes escutado outra voz no fundo quando ligou para ela sobre suas violações de trânsito. Ele pegou a revista de novo, começou a próxima sentença — outra longa — mas pôs de lado. Ele queria ficar feliz por ela, mas a verdade, sentia ele, é que não importava o quão escroto ele tinha sido com ela, ela tinha sido muito mais escrota com ele durante a separação e o divórcio e ele simplesmente não podia ficar feliz por alguém que tinha desistido dele tão rápido, depois de só ter feito e mais tarde confessado só ter feito essa coisa terrível mas totalmente humana. Tudo isso o fez se sentir enjoado, ou como se tivesse acabado de sair de um brinquedo de parque, e como é que podia que quase uma década pudesse passar tão rápido e no fim você só desse as caras na forma de uma pilha de revistas entregues por engano?

Ele decidiu passar o olho pelo resto, só para saber se ele precisava realmente ler, mas passar o olho virou ler e logo ele já estava longe demais na história para voltar atrás. E embora ele houvesse pensado que essa história não tinha nada a ver com ele, aos poucos pareceu que talvez tudo que ela tinha feito foi pegar os fatos do relacionamento deles, mudar o cenário, e inverter os gêneros — fez o homem aquele que deixou, fez a mulher aquela que foi deixada — e por um instante ele gargalhou alto para o vazio da sala. Ele fazia parte da brincadeira, de certa forma, e ela estava dando a letra para ele, insinuando uma piadinha que tinham sobre como ela era o marido dele e ele era a esposa dela, já que ela sempre estava com fome e querendo sexo e ele passava as roupas e tinha um regimento mais elaborado de tratamento de pele.

E quando ele saía da cidade — mesmo por um fim de semana, ou uma viagem à negócios de uma noite — ele retornava à casa deles (casa dela que havia se tornado, tecnicamente, casa deles, uma casa a qual ela ainda se referia às vezes como “minha casa”, embora ela se corrigisse quando na companhia dele e deixava o erro ficar quando não), quando ele retornou à casa deles (uma casa que ela havia comprado apenas meses antes de se conhecerem e um ano antes de ele se mudar e começar a pagar metade da hipoteca e cuja qual, durante sete anos, ele havia oferecido pagar integralmente quando a renda dela estava instável), quando ele retornou à casa deles depois de uma pequena viagem, ela tinha, toda vez e sem falhar, mudado a maioria das coisas dele para locais mais discretos — os livros na cabeceira de volta à ordem alfabética nas estantes; os artigos de banho no chuveiro escondidos embaixo da pia; a escova dele ao lado da torneira colocada num copo no armário de remédios; um par de sapatos ao lado da porta guardados no closet — como se a ausência dele fizesse de suas evidências algo estressante, como se lembrar de seus pés e dentes e cabelos enquanto estavam em outro lugar parecesse algo perverso.

Bem, sim, ele se lembrava de ter movido ao menos uma vez os sapatos dela da sala de estar para o closet enquanto ela estava fora, um incidente que provocou a primeira briga séria deles, que terminou com ela saindo feito um vento e ficando metade da noite fora, chegando em casa perto de amanhecer, de início não dizendo a ele onde esteve, e depois confessando que só ficou naquele restaurante na Flatbush, bebendo café ruim e escrevendo alguma coisa que ela tinha certeza que não prestava, mas na manhã seguinte eles tiveram a esportiva de tirar sarro dessa briga, ambos aceitando alguns quilos da culpa para que pudessem carregá-la, embora talvez nenhum deles realmente acreditasse que estavam errados. Na história, no entanto, não havia briga nem ninguém saindo feito um vento, só um ressentimento silencioso durante o qual a esposa e o marido tiveram pensamentos sintaticamente complicados sobre o outro. Conforme ele virava uma das páginas da revista, um cartão postal endereçado a ela caiu. Era de uma imagem da Torre Eiffel, a palavra Paris impressa no cartão numa fonte vermelha e cafona.

M,

Dá pra acreditar quanto tempo já faz desde Liège? Tava pensando nisso esses dias. Arrumei esse endereço com sua antiga colega de quarto. Você ainda tá aí?

Você ainda tá aí? Ouvi dizer que você é uma mulher casada agora. Tenho muitas saudades suas.

Sempre,

Jean Marcel

Jean Marcel… Jean Marcel. Em sete anos ela nunca tinha mencionado nenhum Jean Marcel e não tinha sido por falta de falar do seu passado. Ela vivia num estado quase permanente de nostalgia, saudade — um sofrimento real — e ela havia contado tudo a ele, mais até do que ele quis saber sobre amores passados, viagens passadas, sobre o seu aparentemente infinito e querido passado. Mas não sobre Jean Marcel.

Jean Marcel, disse ele, encarando a Torre Eiffel, quase esperando que ela o respondesse do outro cômodo, e enquanto encarava o cartão postal ele pensou naquele desenho da Torre Eiffel que tinha circulado online depois do tiroteio na boate — e como era triste que um desenho projetado para o luto mundial das redes sociais tinha substituído qualquer memória verídica dele da vez que visitou a Torre Eiffel — e ao mesmo tempo ele pensava na tarde em que metade de Nova Iorque lia a notícia do ataque no celular e em que ele chegava em casa para encontrar sua então esposa chorando com a cara no chão, histérica — não tinha palavra para isso senão histérica — e quando ela se acalmou o suficiente para perguntá-lo se ele tinha ouvido de Paris (embora sem menção, mesmo aí, de qualquer Jean Marcel), ele não tinha entendido por que ela estava tão profundamente comovida por esse ato específico de violência horrível e não ficava horrorizada quando a mesma coisa ou coisas piores aconteciam em cidades que ela, talvez, nunca tivesse visitado. Histeria baseada em férias, ele nomeou, embora nunca disse a frase a ela, já que o relacionamento estava avançado o bastante para que ele soubesse como evitar as minas terrestres entre eles.

Mas talvez fosse tudo muito simples. A histeria dela não se tratava, em geral, sobre Paris — se tratava desse tal de Jean Marcel, especificamente. Sua esposa estava ainda apaixonada por alguém que ele nem sequer tinha ouvido falar, e foi só após descobrir que havia certa chance de seu querido e perdido Jean Marcel ter sido baleado naquela noite em Paris que ela sentiu, visceralmente, como eram profundos seus sentimentos por ele.

Ele pegou o telefone e ligou para ela e de imediato perguntou, Então é por isso que você ficou triste por Paris? Esse cara? E ela disse, Bem, sim — você se refere à história? E ela disse, Do que mais eu poderia tá falando?

Bom, na verdade eu ainda tô lendo, mas–

Tá lendo ainda?

Eu tava lendo, mas queria te perguntar–

Não vou falar sobre até que você leia inteiro, ela disse, e desligou.

Ele folheou as páginas restantes da história, notando as sentenças que ocupavam uma coluna inteira, blocos volumosos de textos gramaticalmente suspeitos e raramente aliviados por pontuação adequada. Bom, ele não ia ler a coisa toda, a mando, só porque ela disse. Ele não tinha que fazer isso mais. Fechou a revista, olhou para a imagem da capa e as manchetes, pegou seu celular para pesquisar o número de circulação, estimou quanto custaria um anúncio, imaginou o quanto ela tinha sido paga, e tentou achar alguma informação sobre o quanto uma pessoa pode ser paga por uma história assim, mas enquanto ele deslizava por uma thread de três anos num fórum de mensagens em que vários avatares especulavam sobre o quanto estimavam ser a taxa atual dessa revista para ficção breve e se isso mudava com base na fama ou obscuridade relativas do autor, o celular dele tocou e o nome de sua ex-esposa apareceu na tela, como se ela pudesse saber — não importa o quão longe estava — que ele perdia tempo em vez de ler.

Não terminei ainda, ele disse a ela.

Mas eu só queria dizer uma coisa antes. O homem na história, o escritor, ele não é você nem eu. Não é ninguém. É uma ideia. E o mesmo para a mulher. Ela é um punhado de palavras. Não é uma pessoa. Okay?

Tá bom.

Então seja lá o que você quiser me perguntar depois que terminar de ler, não tem nada a ver com você e eu. Entendeu?

Ele jogou o celular no outro lado do sofá e continuou lendo sobre esse casal que vive numa cidade universitária em Kansas (um estado que ele sabia que ela nunca tinha visitado) e o cara é um romancista e professor (típico) e a mulher toma conta de um canil (aleatório) e a mulher só parece ser capaz de reagir emocionalmente ao que acontece com os cachorros no canil ou com pessoas que nunca conheceu, e quanto mais longe uma tragédia ocorresse dela o mais triste ela poderia ficar, uma condição que a impedia, após descobrir do ataque terrorista na boate em Paris, de sequer conseguir sair da cama, então o romancista tem que dedicar um dos seus únicos dias sem aula para cuidar de todos os cães no canil do quintal deles, enquanto sua futura ex-esposa chora na cama o dia inteiro, e no intervalo entre tomar conta dos cães o homem corre de volta pro seu escritório a fim de tentar escrever uma história sobre um francês jovem que é atacado certa noite numa rua estreita em algum lugar da Bélgica e assim que começa a reagir contra seu assaltante ele é tomado por tanta adrenalina e raiva que é incapaz de se controlar e pisoteia a cabeça do assaltante com tanta força que o assaltante ou desmaia ou morre — e o escritor na história aprecia a aparente ambiguidade e imprecisão da memória do francês — e o francês foge da cena, salpicado com o seu próprio sangue e o sangue de outra pessoa, e ele não conta isso a ninguém até contar para sua namorada americana algumas semanas depois e a mulher fica tão horrorizada que imediatamente faz as malas e vai até o aeroporto e enquanto embarca no avião é tomada pela dúvida sobre se ela fez a coisa certa ao deixá-lo. E quando o romancista acaba de escrever essa história no interior de uma história ele vai até seu quarto para ver se sua esposa finalmente se levantou e se vestiu.

Vejo que sua histeria passou.
Histeria? perguntou ela. Como é que você pode usar uma palavra dessa?
Tá bom, sua… tristeza, sua tristeza tão profunda e deliberada.
Mas você disse… histeria.
Bom, você tava em histeria, disse ele.
Eu estava histérica?
Ele pausou.
Bem. Sim. Na verdade, você estava bem histérica.
Ela sabia que tinha algo que deveria dizer, algo sobre as origens patriarcais da palavra histeria e todas as suas iterações, algo sobre Freud, algo sobre o óbvio desrespeito que ele tinha por mulheres e sua suspeita de que no fundo — e nem tão fundo assim, parecia às vezes — ele acreditava que os homens eram o padrão da humanidade e mulheres eram um tipo de desvio intragável.
Mas ela disse
, Esquece, e eles esqueceram.

Mas após aquela cena a história tomou uns caminhos estilisticamente inusitados e de repente a mulher confessa para o marido que não só ela deixava qualquer cachorro do canil lamber a boca dela, como também tinha uma conexão especial com um dos cachorros que ficavam com eles quase regularmente — Ross, o nome do cachorro era Ross — e uma vez ela deixou Ross montar nela tempo o bastante que ela achou que sentiu algum tipo de prazer nisso, e depois que ela contou isso para o seu marido ele destampou a rir, certo de que ela estava brincando e que senso de humor atrevido ela tinha. Na verdade, a esposa continuou, ela não estava brincando e aliás aquilo andava acontecendo com certa regularidade nos últimos meses e ela não tinha vontade nenhuma de parar esse comportamento, ela só achava que ele, como seu marido, deveria saber.

E isso iniciou uma estranha briga entre o casal que no fim dissolveu o casamento deles e em algum ponto na cena o portão do quintal destranca e todos os cachorros presos começam a correr selvagemente em volta da vizinhança e disso a narração se move de forma mais associativa e não-linear pela mente da esposa/ex-esposa, e acontece que na realidade ela mentia para o seu marido/ex-marido sobre sua conexão especial com o Ross, mas o marido, em prantos, acaba confessando realmente ter tido um caso com uma das suas estudantes de pós-graduação no ano anterior, um caso que ele tinha terminado, algo do qual ele não se orgulhava, mas ela, ainda incapaz de sentir-se triste com a traição real de seu marido, diz pra ele que não importa e que ela o daria três dias para sair da casa. A história terminou–

Ela voltou para dentro, assobiou uma vez, e todos os cachorros retornaram.

Ele pegou o celular para ligar para ela, mesmo que estivesse profundamente confuso com o final já que a história tinha começado como se fosse sobre uma mulher deixada pelo marido, mas acabou sendo sobre uma mulher que mentiu para o marido sobre dar uns amassos com um cachorro, e do que isso se tratava afinal de contas, e assim que o celular tocou ele percebeu que ele na verdade não queria falar com sua ex-esposa sobre nada disso, e quando a chamada dele caiu na caixa postal — Não posso atender o telefone agora, deixa uma mensagem, por favor –, aquela saudaçãozinha mansa ele se lembrou de ouvi-la gravar muitos anos atrás, e conforme tentava se recordar dessa memória embranquecida, os detalhes todos idos, ele percebeu que o bip já tinha bipado e quisesse ele dizer alguma coisa ou não, ele já estava deixando uma mensagem.

Retirado de Certain American States: Stories (Catherine Lacey, Farrar, Straus and Giroux, 2018)

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Caetano Barsoteli

Tradutor ▪ Poeta ▪ Dramaturgo ▪ Ficcionista ▪ Educador