Lição de Ficção #01: O refrigerante de cola, a curiosidade e a surpresa

Caetano Barsoteli
4 min readJul 29, 2022

Em que um dos comerciais de refrigerante mais memoráveis nos ensina como aguçar a curiosidade e criar uma surpresa.

Para começar, assista ao vídeo acima. Depois volte ao texto.

Não consegui verificar se esse comercial foi realmente ao ar. Há quem diga que foi banido, há quem afirme que foi televisionado; talvez tenha sido televisionado e depois banido. Seja como for, ele ganhou a web há mais de uma década e tem sido amplamente visualizado. Isso é indício de que o comercial faz algo interessante.

Mas o quê?

No contexto publicitário, o interessante são as vendas. Só que estamos numa lição de ficção, e esse tipo de resultado não entra na análise. O que nos interessa, no contexto da storytelling, é o efeito afetivo. Efeito que imediatamente ativa em nossa cognição um afeto assim ou assado.

Esse comercial ativa dois afetos: a curiosidade e a surpresa.

Quando vemos o menino comprando uma latinha de Coca-Cola na máquina, somos induzidas a pensar que este é um comercial da Coca-Cola. Aqui, a expectativa é criada. Quando o menino põe a latinha no chão, repete a ação com outra latinha e sobe nas duas, nossa curiosidade é aguçada. O que ele está fazendo? A resposta vem a seguir, em forma de surpresa: ele está comprando uma Pepsi.

Um menino sobe em duas latinhas de Coca-Cola.

Os elementos da história são simples: um menino (personagem) quer comprar uma Pepsi (objetivo), mas não alcança o botão na máquina (obstáculo). Diante disso, ele resolve comprar duas Cocas e usá-las como apoios (cooperação), alcançando a Pepsi (resolução).

O elemento destaque nessa história é a cooperação, um elemento que contrapesa a presença do conflito ou obstáculo.

Na ficção, a cooperação aparece tanto na forma de uma personagem aliada aos objetivos da protagonista quanto na forma de um acessório que auxilia a protagonista em sua busca. Fazer da Coca-Cola, arquirrival da Pepsi, o acessório de cooperação do menino é uma sacada astuta e irônica. Mas não é essa sacada que produz as sensações de curiosidade e surpresa.

Repare de novo na descrição da história:

Um menino quer comprar uma Pepsi, mas não alcança o botão na máquina. Diante disso, ele resolve comprar duas Cocas e usá-las como apoios, alcançando a Pepsi.

Há pouca ou nenhuma curiosidade, pouca ou nenhuma surpresa. Ainda assim, essa é a história. No comercial, porém, ela é narrada de outro jeito.

A expressão storytelling aglutina dois termos: story (história) e telling (contar). Em livros e cursos sobre storytelling o foco recai quase sempre no primeiro termo, história. Mas o contar — isto é, a narração — desempenha um papel ainda mais importante para a produção de efeitos afetivos. Na descrição da história, não há efeitos. Mas no comercial há. O segredo está em como você conta.

Vamos imaginar que o comercial tenha a seguinte sucessão de quadros:

(1) O menino contempla o obstáculo da altura → (2) O menino quer uma Pepsi → (3) O menino compra duas Cocas para ficar mais alto → (4) O menino consegue a Pepsi.

A engenhosidade da história — de fazer com que a Coca-Cola sirva de cooperação para se obter a Pepsi — permanece a mesma nessa sequência de quadros. A história não é alterada.

Mas a narração sim!

Se sabemos de início que o menino quer uma Pepsi, a aparição da Coca-Cola é relativamente curiosa e surpreendente. Mas já sabemos que é um comercial da Pepsi. E assim que o menino põe o pé na primeira latinha e entendemos o seu plano, sobra um trecho de narração sem efeitos. Não há mais curiosidade para saciar, não há mais surpresa para nos atingir.

Adiando a revelação do objetivo do menino, como faz o comercial original, cria-se então curiosidade e a condição para se criar surpresa.

Os efeitos de curiosidade e surpresa, assim, são valorizados ao máximo. Essa estratégia narrativa — de omitir o objetivo da personagem para revelá-lo no fim — é uma das formas mais simples de se potencializar uma história que, narrada numa sequência ordinária (personagem → desejo → cooperação → conflito → resolução), não seria tão interessante. Isto é, não produziria efeitos afetivos.

Algo semelhante é feito no curta Vovô viu o vão, um dos mais recordados do Festival do Minuto.

Só ficamos sabendo do objetivo do vovô (pendurar uma rede) e compreendemos qual era o obstáculo (a distância entre as colunas do MASP) no final do curta. Se, ao contrário, a narração nos revelasse seu objetivo desde o início, o curta seria muito menos curioso e surpreendente.

Em outras palavras, seria muito menos — ou nada — emocionante.

A lição na prática

  1. Pegue uma história já criada ou elabore uma nova, de preferência alguma que seja curta.
  2. Identifique o objetivo da personagem principal. Se ele for revelado no início da história, experimente adiá-lo para o fim.
  3. Garanta que a ação da personagem em busca do objetivo esconda o que ela quer e, ao mesmo tempo, levante perguntas sobre o que ela está fazendo. Isso é para que você gere curiosidade e crie expectativas (a pré-condição da surpresa).
  4. Pense de que modo o objetivo da personagem pode surpreender. No comercial da Pepsi, ele surpreende porque somos induzidas a pensar que é um comercial da Coca. No curta Vovô viu o vão, surpreende porque pendurar uma rede entre as colunas do MASP é uma façanha absurda. Mas lembre-se: a surpresa só será sentida em sua máxima potência se a expectativa se instalar antes, isto é, se a narração da história adiar a revelação para o fim.

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Caetano Barsoteli

Tradutor ▪ Poeta ▪ Dramaturgo ▪ Ficcionista ▪ Educador