Lição de Dramaturgia #02: Chaves, Chapolin e o spoonerismo

Caetano Barsoteli
7 min readAug 11, 2022

Em que um antigo diretor de Oxford nos ensina um dos artifícios mais célebres dos seriados mexicanos.

Spooner as caricatured by Spy (Leslie Ward) in Vanity Fair, April 1898

O Reverendo ‎‎William Archibald Spooner‎‎ (1844–1930), antigo diretor da New College, Oxford, era conhecido por cometer um erro de fala peculiar. Como este:

The kinquering congs their titles take.
Os creis ronquistadores seus títulos tomam.

Ficou confusa? Pois é.

Acontece que, no inglês, “kinquering congs” substitui o correto “conquering kings”. No português acontece o mesmo, mas com a perda da aliteração. A letra “r” de reis troca de lugar com a letra “c” de conquistadores. O Reverendo Spooner, de tanto cometer esse erro, deu origem a um artifício linguístico inspirado em seu nome — o spoonerism — que de agora em diante vou aportuguesar para spoonerismo.

Em nossa língua, esse artifício é conhecido como antístrofe, e vem de uma família de artifícios baseada na troca de termos — entre letras e sílabas de uma ou mais palavras ou entre palavras de uma mesma frase.

Veja o gif abaixo: Chaves toca violão ou…

…viola tocão?

Não consegui verificar se o spoonerismo ocorre no original em espanhol ou se é obra da dublagem brasileira. O certo é que a troca de sílabas entre palavras vizinhas confere humor à fala. Um expediente usado à farta na dramaturgia de Roberto Bolaños.

Eis outra iteração, agora de Chapolin Colorado:

Já se passaram três horas e nem sinal do abomineve homem das naves.

Aqui, troca-se a sílaba na de abomivel por ne de neves, ainda com o corte da letra l no fim da primeira palavra, de modo a formar dois vocábulos existentes e lapidar a graça da gag.

O abomineve homem das naves

O spoonerismo opera na morfologia da palavra bem como nos termos da frase. Este é o seu segundo tipo, empregado numa gag recorrente entre o Seu Madruga e o Seu Barriga. Aqui vai uma cacetada delas:

Mas então, vamos trocar essa barriga, sr. Sola?

E como vai a barriga, sr. Ano?

É que, afinal, o senhor tem um montão de barriga, sr. Dinheiro.

E então, sr. Barba, vamos tirar a barriga?

E a propósito, sr. Sapato, não quer que eu conserte a sua barriga?

O senhor tem muita barriga, sr. Humor.

Não quer barrigar, sr. Graxa?

É uma fórmula pronta com infinitas e hilárias variações. Chapolin também a usa para bagunçar os seus ditados:

Em mosca fechada não entra bocas.

Mas boa parte dos ditados errados de Chapolin são frutos de outro procedimento, da mesma família do spoonerismo. Veja:

Pau que nasce torto e te direi quem és!

Quem não tem cão, tanto bate até que fura.

Mais vale prevenir do que dois voando!

Dois ditados populares permutam seus termos. A diferença para os outros tipos de spoonerismo é que a outra metade do texto é deixada de fora:

Pau que nasce torto morre torto.
Me diga com quem andas
, e te direi quem és.

Quem não tem cão, caça com gato.
Água mole em pedra dura
, tanto bate até que fura.

Mais vale prevenir do que remediar.
Mais vale um pássaro na mão
do que dois voando.

O texto dito pressupõe um texto já conhecido pelo espectador. Diferente dos spoonerismos clássicos, que operam unicamente no texto dado.

Como na obra de Chespirito, o spoonerismo, em todas as suas versões, serve também para caracterizar personagens. Chaves troca sílabas entre uma ou mais palavras (Violar tocão, tevelisão), sugerindo sua pobreza cultural; Seu Madruga troca as palavras quando interage com o dono da vila (Tem muita barriga, sr. Razão!), sugerindo— à la ato falho — como gostaria de ofender a quem lhe cobra o aluguel; e Chapolin Colorado troca ditados populares (Dois olhos veem mais que um coração que não sente), sugerindo sua pseudo-sabedoria e confiança falha— todas marcas distintas de caracterização, mas baseadas no mesmo artifício.

No clássico filme screwball Levada da Breca, Major Applegate também é caracterizado por um tipo de spoonerismo. Quando Susan (Katherine Hepburn) prega uma peça em David (Cary Grant), informando-lhe o horário errado, o Major se apressa em corrigi-la:

Major Applegate: Desculpe, mas são 8:10.

Susan (ao telefone): Quando ouvir o sinal, será 7:41.

Major Applegate: O meu relógio diz que são 8:10 e um quarto.

Susan: Quem é você?

Major Applegate: Quem sou eu? Eu sou 8:10. Eu — eu — eu sou o Major Horace Applegate.

O personagem do Major, um caçador inveterado, sujeito aparentemente orgulhoso de suas experiências, exibe, por trás de toda a sua sapiência, certo nervosismo, certa insegurança, denunciados pelos spoonerismos que comete. O artifício, neste caso, é uma janela que revela uma faceta que o personagem tenta não demostrar.

O Major 8:10.

Além de uma marca de caracterização, o spoonerismo pode ser um recurso ocasional para expressar confusão, perturbação ou indignação. Em The Real Inspector Hound, peça do dramaturgo inglês Tom Stoppard, o personagem Birdboot reclama:

I find it simply intolerable to be pillified and villoried.
Acho simplesmente intolerável ser rilificado e vidicularizado.

Isto é: vilificado e ridicularizado.

De bônus, veja Millôr Fernandes, que traduzia muito teatro, mas também reescrevia fábulas, como esta, inspirada em Esopo e feita toda em spoonerismos, a começar por seu título — A Baposa e o Rode:

Por um azino do destar uma rapiu caosa num pundo profoço do quir não consegual saiu. Um rode, passi por alando, algois tum detempo, vosa a rapendo, foi mordade pela curiosidido. “Queradre comida, qué ê que esti fazá aendo?” “Voção entê são nabe?” respondosa a rapreira mateu. “Vaí em a mais terreca sível de teste a histoda do nordória. Salti aquei no foço deste pundo e guardarar a ei que brotágua sim pra mó. Porér, se vocem quisê, como é mau compedre, per me fazia companhode. “Sem pensezes duas var o bem saltode tambou no pundo do foço. A rapente, imediatamosa, trepostas nas cou-lhes, apoífre num dos xides do bou-se e salfoço tora do fou enquava berranto: “Adadre, compeus!”

MORAL: JAMIE CONFAIS EM QUA ESTADE EM DIFICULDÉM.

E agora a tradução — ou a despoonerização — da fábula:

Por um azar do destino uma raposa caiu num profundo poço do qual não conseguiu sair. Um bode, passando por ali, algum tempo depois, vendo a raposa, foi mordido pela curiosidade. “Querida comadre, quê é que está fazendo aí?” “Então você não sabe?” respondeu a raposa matreira. “Vem aí a mais terrível seca de toda a história do nordeste. Saltei aqui no fundo deste poço e guardarei a água que brotar só pra mim. Porém, se você quiser, como é meu compadre, pode me fazer companhia. “Sem pensar duas vezes o bode saltou também no fundo do poço. A raposa, imediatamente, trepou-lhes nas costas, apoiou-se num dos xífres [sic] do bode e saltou fora do poço indo embora enquanto berrava: “Adeus, compadre!”

MORAL: JAMAIS CONFIE EM QUEM ESTÁ EM DIFICULDADE.

A lição na prática

  1. Encontre uma lista de provérbios ou ditados populares e brinque com eles. Empregue o spoonerismo para misturar os dizeres, as frases ou as palavras. Observe que efeitos de som e sentido você pode provocar com as trocas.
  2. Assim como Chaves, Seu Madruga, Chapolin e o Major Applegate, pense em algum traço escondido em sua personagem. Uma insegurança, uma vontade ou opinião guardada a sete chaves, um nervosismo para com alguns assuntos ou situações, uma limitação. Depois, pense em que tipo de spoonerismo você pode empregar (troca de sílabas, palavras, dizeres) para, ocasionalmente, sugerir esse traço da personagem.
  3. Pergunte-se: que outros estados emotivos podem ser exprimidos com algum tipo de spoonerismo? O tédio, a tristeza, a euforia podem encontrar no artifício um meio de expressão? Tente escrever falas em que personagens expressam diferentes emoções. Não seja literal (Estou entediada, triste, eufórica…); mantenha a emoção no subtexto da fala e use o spoonerismo para delatá-la.
  4. Como fez Millôr Fernandes, desafie-se agora a escrever não uma fábula, mas um monólogo falado de fora a fora em spoonerismos. Não pense ainda no propósito do monólogo. Trate-o como um experimento linguístico. O desafio de escrevê-lo refletirá também no desafio do ator ou atriz que por ventura o interpretar — o que torna tudo ainda mais divertido!
  5. Experimente criar novos tipos de spoonerismo. Vimos, em Chespirito, o artifício na troca de sílabas, palavras numa mesma frase, e ditados populares. O Major Applegate, por sua vez, comete o spoonerismo trocando termos no interior de um diálogo, ora de falas suas, ora de falas dos outros. Mas que outros contextos e dimensões tornam possível a aplicação do spoonerismo? Que outras formas há de inovar esse artifício? Reflita, experimente e crie!

--

--

Caetano Barsoteli

Tradutor ▪ Poeta ▪ Dramaturgo ▪ Ficcionista ▪ Educador