Lição de Dramaturgia #01: Sísifo e os gêneros discursivos

Caetano Barsoteli
8 min readAug 5, 2022

Em que uma peça de Vinicius Calderoni e Gregório Duvivier nos ensina como manipular gêneros em cenas cômicas e dramáticas.

Gregório Duvivier saltando da rampa em cena de “Sísifo”.
Gregório Duvivier em cena de “Sísifo”.

Um gênero pode ser uma forma de falar ou escrever, desenhar, pintar ou esculpir, de fazer arquitetura, música ou artes mistas como o cinema, a televisão, os games e o teatro. E todo gênero é discursivo, no sentido de manifestar, intencionalmente ou não, um conjunto de conhecimentos, práticas e valores ao qual chamamos de discurso.

É quase impossível, no cotidiano e nas artes, escaparmos do uso de algum gênero.

Pense, por exemplo, na conversa de elevador. Um gênero cotidiano em que duas pessoas estranhas ou sem intimidade pegam o mesmo elevador e são obrigadas a dividir por alguns segundos aquele espaço apertado. Nessa situação, cresce uma pressão comunicativa. Quando uma das partes cede, um fio de conversa é jogado fora.

Bom dia! Calor, né? E a família? Será que chove?

O gênero se define tanto pela situação quanto pelo estilo e conteúdo de linguagem que ela incita. É por isso que a expressão gênero discursivo também se passa pelo nome de gênero performativo (ênfase na ação-situação) ou gênero linguístico (ênfase na língua). Quando o gênero é restrito a alguma mídia ou arte, temos gênero textual, gênero literário, gênero cinematográfico, etc.

No teatro, situação — personagem, ação, cenário — e linguagem são os tijolos de uma cena.

Podemos pegar um gênero discursivo (performativo, linguístico) como a “conversa de elevador” e o transplantar para o teatro. Assim, temos uma cena praticamente pronta, um ready-made cênico. Mas se nos limitamos a copiar uma situação cotidiana, o atrativo da cena recai apenas na mimese, isto é, na reprodução mais ou menos fiel de algo exterior à encenação. Por outro lado, o que muitas dramaturgas fazem, principalmente na comédia, é acrescentar à situação um elemento imprevisível a fim de desvirtuar o gênero.

Veja Gregório Duvivier e Vinicius Calderoni mimetizando e desvirtuando o gênero conversa de motorista de aplicativo na cena “Hospedeiro”, da peça Sísifo: ensaio sobre a repetição em sessenta saltos:

Opa, boa tarde.

É Evandro, né?

Seja bem-vindo, Evandro. Tava boa a praia?

Vamos pra esse endereço mesmo?

Você tem algum caminho de preferência ou podemos ir pelo aplicativo?

Ah, beleza. Ar condicionado tá bom assim?

Se quiser, é só me pedir que eu troco a rádio.

Evandro, tem balinha aqui no porta-moedas e eu tenho água aqui também, tá servido?

Maravilha, fica à vontade.

Tudo parado, né?

Opa, andou. Só falar.

Até aqui, a reprodução do gênero é fiel. Qualquer pessoa que já tenha feito uma viagem por um aplicativo deve reconhecer a situação e a linguagem representadas no texto. Há, contudo, um leve desvirtuamento na escrita da cena, já que as respostas do passageiro Evandro são omitidas, transformando as falas do motorista num monólogo.

Depois de uma rubrica indicando a passagem do tempo, a cena segue:

Pelo roteiro, essa é a hora que eu falava que político é tudo ladrão, mas você se importa se eu mudar de assunto?

Qualquer coisa é só me pedir que eu falo que nunca vi fazer tanto calor essa época, tá louco e tal…

Sabe o que é engraçado?

Esse carro é meu. Eu demorei cinco anos pra quitar, por causa das prestações. Com os juros que eu paguei, dava pra ter comprado dois desse. Mas paguei. Agora é meu, tem até documento no meu nome, tudo bonitinho.

E eu sou meu. Eu ainda não terminei de me quitar, tô há mais de 30 anos pagando prestação, parece que ainda tem uns 50 pela frente. Com os juros dava pra ter sido o dobro disso que eu sou. Mas tô aí, com direito de ir e vir e tudo. Tenho até documento com meu nome, tudo bonitinho.

Mas quando você entra neste carro que é meu, dirigido por mim que sou meu, o caminho é seu.

A sua trajetória é continente da minha trajetória. Eu me moldo ao seu desejo como a água toma a forma de um corpo.

O desvirtuamento, nesse trecho, é muito mais marcado. Por dois motivos. Primeiro, porque o motorista troca o discurso corriqueiro pelo meta-discurso, isto é, um discurso sobre o próprio discurso (Pelo roteiro, essa é a hora que eu falava que político é tudo ladrão). Segundo, porque o motorista, compartilhando detalhes de sua vida pessoal, começa a tecer uma metáfora que tira a cena do plano ordinário (Eu ainda não terminei de me quitar, tô há mais de 30 anos pagando prestação, parece que ainda tem uns 50 pela frente).

A cena se desvia do que costumamos vivenciar na realidade do gênero retratado.

Embora a situação — carona no aplicativo — continue a mesma, o estilo e conteúdo da linguagem mudam. A conversa chocha dá lugar a uma reflexão existencial, e as expressões práticas (Vamos pra esse endereço mesmo?) e fáticas (Tudo parado, né?) dão lugar à expressões poéticas (A sua trajetória é continente da minha trajetória. Eu me moldo ao seu desejo como a água toma a forma de um corpo).

O gênero, contudo, não é descaracterizado. No final do monólogo, a linguagem volta à sua origem genérica, produzindo o arremate cômico:

Mas sabe o que é mais engraçado? Agora que eu me sinto carne da sua carne, que nós somos irmãos na carona compartilhada da experiência humana… a gente chegou.

Pode encostar aqui mesmo?

Se puder dar aquelas cinco estrelinhas, pra dar aquela moral…

Desculpa qualquer coisa.

A graça da cena é elevada quando o gênero é subitamente retomado após uma longa tangente poética e filosófica. É por isso que gêneros discursivos costumam ser mimetizados e desvirtuados na comédia. O contraste entre o estranho e o familiar, ou, em outras palavras, a incongruência, é um dos princípios mais comuns do humor.

Duvivier e Calderoni empregam a mesma estratégia de criação em outras cenas de Sísifo, como em “Destroços”, cena mais dramática que transita entre três gêneros discursivos, a começar pelo repórter in loco cobrindo a tragédia em Brumadinho.

Daqui de perto as imagens impressionam. A onda de lama deixou marcas por toda parte. Os destroços são estarrecedores.

O gênero é reproduzido a rigor, até ser desvirtuado quando o repórter ressalta o destino perdido de objetos específicos encontrados nos escombros.

A gente vê aqui um escorredor de macarrão de uma macarronada que não vai mais acontecer neste domingo, uma mesa pra jogar baralho onde não vai ter mais carteado, uma vitrola que não vai mais tocar nenhum disco do Pixinguinha.

O desvirtuamento é agravado quando a cena transita de Brumadinho para as tragédias em Mariana e no Museu Nacional, introduzindo outro gênero discursivo que vai substituindo o primeiro.

Eu vou pedir pra vocês chegarem mais perto pra mostrar esses outros objetos do pessoal de Mariana, também tá cheio de coisa por aqui, bem aqui ao lado, olha só, das cinzas do Museu Nacional, mal dá pra reconhecer o que eram esses objetos […]

O monólogo segue nomeando os objetos destruídos no incêndio do Museu Nacional, assumindo, dessa vez, o gênero guia de museu. Ele então passa a listar uma série de outras tragédias brasileiras, terminando por enumerar mortes, chacinas e assassinatos notórios.

… pra ver aqui os corpos das vítimas da Chacina da Candelária, os presos mortos no Carandiru, os garotos vítimas do incêndio no CT do Flamengo, os meninos da escola de Suzano, logo ao lado de todos os homossexuais e transexuais assassinados, ao lado dos mortos na guerra ao tráfico, dos mortos por armas de fogo em brigas de trânsito, das mulheres assassinadas por seus parceiros violentos, dos ativistas e militantes mortos durante a ditadura militar, Marielle, Chico Mendes, Dorothy Stang, Ágatha Félix, estão também todos aqui nesta exposição permanente.

O atrito entre situação e linguagem (seu tom e conteúdo) confere à cena um atrativo que ela não teria caso o monólogo fosse apenas uma reprodução mimética de um guia de museu ou uma listagem de tragédias divorciada de um contexto.

O terceiro gênero discursivo trabalhado pela cena, o do anúncio, surge assim que o trecho acima termina, numa virada mais cômica:

Pra todo mundo que quiser visitar a exposição, o Museu das Nossas Vergonhas está aberto 24 horas por dia ao ar livre e com entrada franca. A exposição fica em cartaz por tempo indeterminado […] Se você ainda não viu, corra. Se já viu, sempre vale voltar porque o acervo é permanentemente atualizado.

Os desvirtuamentos ocorrem tanto no interior de cada gênero (na manipulação de situação e linguagem) quanto na cena em geral, que reveza diferentes gêneros discursivos no esforço de tecer um comentário crítico e satírico sobre as catástrofes brasileiras.

Além do mais, os gêneros servem, nessa cena, para construir uma metáfora do Brasil: somos uma atração de noticiários, um museu de desastres.

De bônus, confira duas mimeses e desvirtuamentos cômicos de um gênero nativo do YouTube, o gameplay. O primeiro é um esquete do Porta dos Fundos:

O segundo é um esquete do especial de comédia Bo Burnham: Inside:

Há pelo menos três desvirtuamentos em cada esquete:

  1. A vida do gamer virando um gameplay (Porta dos Fundos) e o gamer jogando a si próprio (Burnham);
  2. O live-action, em vez da animação, representando o game (ambos esquetes);
  3. E um personagem depressivo cujo objetivo é ou impedir seu suicídio (Porta dos Fundos) ou, ao que parece, simplesmente chorar (Burnham).

Repare também que os desvirtuamentos dois e três ocorrem não no gênero do gameplay, mas no próprio gênero dos videogames, que está contido no primeiro.

A lição na prática

  1. Escolha um gênero discursivo, presente nas artes, mídias ou cotidiano. Dê preferência para gêneros que contenham linguagem, ações, cenários e personagens bem marcados. Eis algumas sugestões: desfile de escola de samba, palestra motivacional, missa, narração de jogo de futebol, reunião de trabalho online, bingo, vendedor ambulante, locutor de rádio FM, tutorial do YouTube, show de hipnose.
  2. Estruture uma cena em torno do gênero escolhido. Pense em quais elementos de linguagem, ação, cenário e personagem você pode mimetizar. Repare que diferentes gêneros têm diferentes ênfases: alguns enfatizam mais a ação do que a linguagem, outros mais a personagem do que a ação, e ainda outros mais a linguagem do que a ação, a personagem e o cenário.
  3. Procure — nas ações ou no cenário, no conteúdo ou no estilo da linguagem, no objetivo ou no tipo da personagem — uma forma de desvirtuar o gênero. Algo imprevisível, contrastante, estranho. O desvirtuamento pode, inclusive, ser feito pela remoção de um elemento — a remoção das falas do passageiro na cena do motorista de aplicativo em Sísifo. Feito isso, tente variar entre o estranho e o familiar presentes na sua cena.
  4. Experimente misturar mais de um gênero. A colisão entre dois ou mais gêneros numa mesma cena pode resultar em desvirtuamentos curiosos. Uma personagem do gênero X no cenário do gênero Y, ou a linguagem do gênero A sobreposta às ações do gênero B. Ou então, como na cena “Destroços”, de Sísifo, você pode transitar entre um gênero e outro a fim de tecer um comentário e construir uma metáfora.
  5. Falando nisso, pense sobre a metáfora sugerida pelo gênero de sua cena. Se você fala sobre injustiças sociais e usa o gênero da missa, de que forma a missa pode metaforizar as injustiças sociais? Se você fala sobre o sucateamento da ciência e tecnologia e usa o gênero da palestra motivacional, de que forma esta metaforiza aquele? Pensar nisso pode conduzir sua cena para além do riso e dar a ela uma dimensão crítica.

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Caetano Barsoteli

Tradutor ▪ Poeta ▪ Dramaturgo ▪ Ficcionista ▪ Educador