Diário de Antônio Oliveira #01

Caetano Barsoteli
2 min readAug 3, 2022

Fragmentos de um escritor recolhido.

by Alexandra Cool in Moments of Writing

Existo. Porque penso, porque sinto, porque acho que existo. E basta. Só não existo comigo, em coincidência. Coincido com outros, lá fora, na rua, em outras câmaras, mas também com outros aqui dentro, almas de minha alma, inquilinos de uma pensão anímica, anônima e bege. De um bege, pior que do nada, do neutro, de um bege sem-vida que demora a morrer. São eles aqui, e eles lá fora, que nalguma comunicação infrassônica ou telepática se falam e fazem e fingem. E eu, anfitrião de vozes muitas e de tão volumoso silêncio, escrevo, que é para enganar a materialidade da tinta da materialidade do meu existir.

Dormir às vezes é uma tortura. E no entanto o que mais quero esta noite é ser torturado.

É sempre um sentimento melancólico o forjar de um outro eu. Talvez porque o outro nasça necessariamente sem amigos, sem amores. Nasça sem ninguém a conhecê-lo, a não ser si mesmo. Fazer outro é antever a solidão completa que sucede o primeiro choro de uma longa existência. É, em certo sentido não inteiramente literal, nem tão somente metafórico, condenar a existir algo que antes não era, e que portanto gozava da paz do nada — isto é, da paz que realmente é paz, do nada que realmente é nada.

Não acho feia a mentira. Em certas hipóteses, é a expressão mais verdadeira do que seria se a verdade fosse. Em alguns casos, mentir é representar a verdade retraída nos confins do íntimo.

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Caetano Barsoteli

Tradutor ▪ Poeta ▪ Dramaturgo ▪ Ficcionista ▪ Educador